Ao ler “De onde eles vêm” eu entendi o conceito de “escrevivência”. Embora não seja uma leitura inteiramente autoficcional, é uma leitura que não tem uma voz única.
O que mais me atrai na escrita poderosa de Jeferson Tenório é o modo como ele consegue derramar emoção sobre o texto. Lê-lo é sempre uma experiência atravessada por uma dor pungente. A escolha das palavras, da voz narrativa e das cenas, parecem ser milimetricamente feitas em busca de levar o leitor ao derramamento emocional. De certa forma, isso o relaciona muito com Toni Morrison, outra autora que nos convida a lugares inquietos para falar das dores. Mas em Jeferson, é diferente porque ele fala precisamente de uma realidade brasileira. O que li em “De onde eles vêm”, foi muito da minha história, mas também da história de meus amigos, dos meus familiares. Assim, essa leitura mobilizou lembranças que são compartilhadas entre o autor e uma enorme parcela da população. Ao ler “De onde eles vêm” eu entendi o conceito de “escrevivência”. Embora não seja uma leitura inteiramente autoficcional, é uma leitura que não tem uma voz única. Ao escrever, Jeferson Tenório escreve sobre si, mas também sobre vários.
Os Livros
O livro nos apresenta a trajetória do personagem Joaquim na universidade. O leitor não é informado, nominalmente, qual universidade é essa. Sabemos que é uma universidade pública em Porto Alegre, uma universidade grande e é muito fácil relacionar essa descrição com a UFRGS que, a propósito, foi a universidade em que Jeferson se formou em letras (também o mesmo curso do personagem Joaquim). Aqui, então, imaginamos que seja uma obra que irá trazer inúmeros elementos autobiográficos e, confesso, é muito difícil distanciar a voz narrativa (em primeira pessoa, voz do próprio Joaquim) da voz do próprio autor. Algo semelhante me aconteceu durante a leitura de Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo. Enquanto lia, tinha firma na minha cabeça a imagem da própria Conceição, o que acontece com Jeferson e Joaquim e isso não apenas pela similaridade dos nomes. Diferente do que acontece em “O Avesso da Pele”, do mesmo autor, senti neste romance uma voz narrativa que tem ideias muito parecidas com as que o próprio Jeferson tem e diz nos eventos. Eu, que já o ouvi inúmeras vezes, registrei também expressões e citações do autor na boca de Joaquim.
Ademais, Joaquim e Jeferson foram alunos de uma universidade pública que acabava de instituir as cotas como um procedimento de ações afirmativas contra o racismo e a desigualdade racial. Essa época, vale dizer, era uma época em que as cotas não eram tão bem vistas (se é que são bem-vistas) como hoje. Cabe rememorar que muitos intelectuais que hoje se posicionam a favor das cotas hoje pensavam que essa era uma forma de discriminação. O estigma que se tinha sobre pessoas cotistas era que eles tinham menos aptidão intelectual para estar naquele lugar e que foram privilegiados por um sistema que, no fundo, era preconceituoso.
Jeferson foi muito feliz em mostrar como esse estigma recai sobre o personagem Joaquim. O burburinho sobre sua presença em sala de aula, os comentários que ouvia e até mesmo a sua própria sensação de despertencimento aquele espaço é algo muito bem construído por meio do estranhamento que Joaquim tem em relação aos seus colegas e também do tratamento, como quem se pisa em ovos, que os demais alunos tinham com ele.
Aos poucos, Joaquim vai percebendo que, sim, havia diferença entre ele os demais colegas brancos que entraram por ampla concorrência e isso não se devia à sua capacidade intelectual, mas sim às oportunidades. Ao contrário dos demais, Joaquim não teve acesso fácil a livros, nem à cultura dita erudita e ao pensamento filosófico que se cobrava na universidade. Assim, ele (assim como eu e eu imagino que tantos outros), sentia que precisaria correr muito para alcançar o lugar que os outros estavam.
Há um trecho muito significativo em que lemos sobre a presença dos livros na vida do personagem, que é quando ele fala sobre um livro de capa dura, verde, que falava sobre nutrição e alimentação e que pertencia à sua família. Nessa hora, eu me emocionei muito, pois a minha família tinha um livro de capa verde que falava sobre nutrição e alimentação e que eu, enquanto criança, tive uma relação muito semelhante à do personagem com esse objeto-livro:
“Até os meus doze anos, eu nunca tinha lido. Eventualmente o abria em uma página qualquer, mas acontece que o livro tinha outras funções em minha vida. Servia de brinquedo, objeto que eu jogava de lá para cá, nunca para leitura. Mas penso que, de certa maneira, o livro cumpriu seu papel comigo. Foi útil para as necessidades básicas que eu tinha. Então, uma vez, ainda na infância, quando me senti entediado, abri o livro. Lembro que deitei no sofá e comecei a ler sobre maças, bananas e abacaxis. Aquela imagem de uma pessoa deitada no sofá lendo um livro me atraía. De algum modo, tornei-me leitor não por causa de uma leitura em si, mas porque eu gostava daquela imagem: alguém que lê”.
Trecho da página 55.
Quem tem direito ao sonho?
Joaquim é um jovem de periferia que nem de Porto Alegre é. Tudo em sua vivência torna o acesso à universidade uma coisa difícil: Chegar ao campus para as aulas com uma distância considerável, a falta de dinheiro para o transporte e para a alimentação, a impossibilidade de comprar livros, a necessidade de ficar com a avô que tem alzheimer e precisa de cuidados constantes. Ler essa situação de impossibilidade de se alcançar um sonho tão simples, que é a formação em letras, é sufocante e nos faz perceber que apenas as cotas não são o suficiente. Nós não queremos apenas ingressar na universidade, queremos permanecer, queremos o direito a estudar com a mesma tranquilidade de alguém que apenas estuda.
A literatura de Jeferson Tenório não é para construir uma história de superação de um jovem negro de periferia que consegue ingressar na universidade. “De onde eles vêm” é um livro-denúncia das dores que passamos para conseguir o que para alguns é algo simples.
O autor faz questão de escrever um personagem que toma consciência dessas desigualdades. Letrado pela denúncia social dos Racionais Mc’s e pela voz profética de Mano Brown, Joaquim consegue reconhecer sua situação degradante e ao mesmo tempo em que sente vontade de mudar, sente ódio. Se em “O Avesso da Pele” encontramos um personagem mais melancólico e mais pessimista, em “De onde eles vêm” o pessimismo permanece, mas com muito mais raiva. O linguajar carregado de palavrões de Joaquim, o uso recorrente da palavra “merda” no texto, além das passagens de “sangue-no-olho” dão o tom da narrativa.
De certa forma, a estética do texto, com passagens de descrição de cenas degradantes que denunciam a situação de pobreza em que vivem os personagens (uma pobreza para além da pobreza monetária, mas também pobreza de oportunidades) poderia ser lida como uma aproximação de uma estética naturalista, afinal, há algo gráfico nas descrições dos cheiros, das roupas. Mas eu acho que não é bem isso. Ao invés de aproximar Jeferson de autores naturalistas, prefiro aproximá-lo de outros autores de prosa como o também gaúcho José Falero, o baiano Hamilton Borges dos Santos e o paulistano Ferrez que estão fazendo experimentações em uma literatura propositalmente chocante em que a violência das imagens desconfortáveis é proposital, é para acordar a casa grande (para citar, mais uma vez, Conceição).
Notas sobre a escrita contemporânea
Vejo alguns pontos de encontro entre os livros “De onde eles vêm” e “O Embranquecimento”, este último de Evandro Cruz Silva e que eu também resenhei (leia aqui). Os dois livros vão falar sobre a vivência de pessoas negras nas universidades e a construção da intelectualidade negra neste espaço tão hostil que é o espaço acadêmico.
Para além disso, gostaria de traçar algumas críticas à forma do texto literário e que são muito parecidas com as críticas que eu fiz ao livro de Evandro. São críticas que eu faço com muito respeito aos autores e com as obras, entendendo a proposta estética dos autores. Mas eu acho que são livros que podem pecar pelo excesso. Jeferson, menos que Cruz Silva, também toca em assuntos sem o desenvolvimento que eles pedem. Por outro lado, mais do que Cruz Silva, ele aponta neste livro uma dificuldade de fechar arcos narrativos, algo que não aconteceu em “O Avesso”.
Muitos personagens não são desenvolvidos, o que me deixa triste, pois, no pouco em que são descritos, são extraordinários! O livro termina sem que saibamos, exatamente, o destino de Sinval, Jéssica, Ana Clara e até mesmo de Elisa, personagem que exerceu função muito importante na narrativa em mostrar os pontos de desencontro de uma relação interracial e o espaço acadêmico. Sinval, talvez, seja o mais sintomático, pois ele exerce uma função muito importante no início da narrativa em despertar Joaquim para uma leitura mais madura e crítica, mas no fim, ouvimos do personagem Joaquim que ele apenas gostaria de “voltar a falar” com Sinval, mas não é desenvolvido exatamente como se deu esse afastamento, se o amigo tentou se reaproximar dele, nem nada. Por um tempo, até esqueci que ele havia aparecido no início da narrativa.
Ademais, muito parecido com “O Embranquecimento”, Jeferson abre intervalos na narrativa para falar de assuntos que ele não vai concluir. Como a relação de encanto e desencanto entre uma menina negra cotista e sua professora/orientadora branca, a relação de um jovem de periferia e a homossexualidade, a relação afetiva/sexual de uma jovem negra militante e o seu professor branco e burguês. São assuntos que ele toca, mas, que se abrisse, poderia dar vários livros.
Fico com a sensação, e isso é algo que eu tenho tido com muita frequência ao ler literatura contemporânea, que se tem medo de se desenvolver uma narrativa grande como fazia Dostoiévski ou João Guimarães Rosa em que, sim, se perpassa por inúmeros temas, mas todos eles são alcançados de forma concluí-los. Não sei se isso se deve ao nosso tempo, cada vez mais desgarrado das narrativas longas.
Ora, uma narrativa não tem demérito algum quando ela consegue, no pouco texto, dar conta de falar o que o autor pretende. Mas livros como “O Embranquecimento” e “De Onde Eles Vêm” tem um potencial gigantesco de ser uma narrativa mais detalhada, de modo que a sensação que eu tive ao ler os dois foi que há quase uma pressa de se encerrar um livro e por isso algumas coisas são “comidas” na narrativa.
Acredito no papel da crítica em expressar pontos de melhoria e destaco esse: é preciso alongar a discussão. O livro de pouco mais de duzentas páginas que Jeferson entregou é lindíssimo e pode ser considerado longo para os moldes da literatura contemporânea, mas poderia ser maior para ampliar a discussão. Isso sem falar que o excesso de sumarização (não a descrição da cena em si, mas apenas o relato da cena) é algo que faz com que a narrativa perca muito. Ora, eu sinto falta de diálogos mais marcados em travessão na literatura de Jeferson Tenório, acho que eles não fazem mal algum (risos), mas nos permitem ouvir os personagens.
Saúdo do Orí de Jeferson Tenório
Termino essa resenha dizendo que “De onde eles vêm” é uma leitura que vale a pena e que consolida Jeferson Tenório como uma das vozes mais fortes e talentosas da nossa geração. A consistência da voz narrativa comprova isso, a crítica bem-feita sem apelar para jargões também. Lê-lo é sempre um prazer, embora também desconfortável.
Gostaria de falar, por fim, da belíssima cena do personagem Joaquim em um terreiro mais para o fim do livro. Este é um exemplo de tema que Jeferson consegue construir perfeitamente desde o início da narrativa e sem deixar pontas soltas, provando que ele tem toda a capacidade de fechar os arcos narrativos, embora não faça sempre. A relação de afastamento e de aproximação do personagem Joaquim com a espiritualidade ancestral é uma aula de desenvolvimento narrativo. Se a entrada na universidade afastou o jovem da sabedoria ancestral, ele é puxado de volta por laços de sangue e de espírito que são mais fortes. De certa forma, a culminância do texto é justamente essa: é impossível fugir de onde nós viemos. É preciso pensar em nossa origem não como forma de detrimento, mas de reencontro com uma história de resistência, luta e vitória.
P.s: Pensaram também no Joaquim Maria Machado de Assis ao ler “De onde eles vêm”?
‘De onde eles vêm’, de Jeferson Tenório, está entre os melhores livros de 2024 da revista O Odisseu! Clique aqui para ler lista completa.
De onde eles vêm,
de Jeferson Tenório.
Editora Companhia das Letras (2024).
207pp.