Para nossa tristeza e tédio, ganha cada vez mais força a clássica figura de aparência irretocável e vida adjetivada, incapaz de confessar “uma infâmia” ou “uma covardia”.
Há alguns anos, na crônica intitulada “Adereços e Personagens”, eu falava das pessoas irreais, que pareciam emergir das páginas de um livro. No texto, escrito, à época, para a coluna dominical de literatura do jornal Diário Popular de Pelotas, lembrava que, no “Poema em linha reta”, Fernando Pessoa, através de seu heterônimo Álvaro de Campos, nos fala da repulsa pelo homem “ideal”. Recordava, ainda, Anton Tchekhov, no magistral conto intitulado “Um homem extraordinário”, quando nos apresenta o personagem Kiriákov, que provoca medo e ódio na parteira Mária Pietróvna, por ser, nas palavras da esposa parturiente, “honesto, justo, ponderado, sensatamente econômico, mas tudo isso em dimensões tão extraordinárias, que os simples mortais se sentem sufocados”.
Em tempos de valorização da imagem em detrimento da realidade; da embalagem no lugar do conteúdo, a reflexão continua atual. Para nossa tristeza e tédio, ganha cada vez mais força a clássica figura de aparência irretocável e vida adjetivada, incapaz, como no poema citado, de confessar “uma infâmia” ou “uma covardia”. Incapaz, provavelmente, de rir de si mesmo. Ou, pior ainda, aquele ser “extraordinário” a distribuir, sorridente e sem que lhe peçam, suas verdades absolutas sobre todos os assuntos. Se tipos assim eram retratados como enfadonhos no final do século XIX, imagine o leitor o quão tediosos podem parecer nos dias atuais, em que a comunicação instantânea multiplica, em segundos, toda a sorte de baboseiras.
Como a grande maioria das pessoas, ao circular pelas redes sociais, desejo mostrar meu melhor ângulo. A fotografia mais bonita. E, salvo certas circunstâncias, não me agrada distribuir minhas tristezas particulares num mundo de algoritmos insensíveis. A dor, em geral, costumo guardar para mim e para aqueles que podem me abraçar ou confortar à moda antiga, olho no olho, com palavras carinhosas ditas ao ouvido. Isso não significa, contudo, deixar de ser verdadeira. Quase sempre, na grande vitrine da vida, real ou virtual, criamos belos personagens. Hoje, como outrora, faz parte da natureza humana, mostrar-se da melhor forma possível. Um gesto, inclusive, de delicadeza com o outro, que não deve ser exposto, de forma habitual, às nossas mazelas, mas sim ao que de melhor habita em nós. Recordemos, aqui, que a palavra pessoa tem sua origem na expressão latina “persona”, a máscara usada pelos atores no teatro clássico. Esse verniz social, porém, não pressupõe deixar de sermos quem somos. Pois, o ato de “personalizar-se”, embora seja inerente à condição humana, poderá ou não traduzir nossa essência. Escolher o que vamos revelar ao mundo; se seremos autênticos ou não; se nos apresentaremos como seres perfeitos ou humanos de carne, ossos e imperfeiçoes, fará toda a diferença. Porque, por baixo dos adereços e da embalagem, haveremos de reconhecer alguém real; ou, como o poeta, teremos de perguntar: “Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”
“Quase sempre, na grande vitrine da vida, real ou virtual, criamos belos personagens”, Luciana Konradt
(Continua após a imagem)
Cada vez mais, vivemos a sensação de que as relações se tornaram “fluidas” e “líquidas”, como definiu o filósofo Zygmunt Bauman. No imenso oceano da comunicação globalizada, o culto ao consumo, ao individualismo, à vaidade, e a proliferação de vínculos artificiais e voláteis substituiu antigos padrões de uma sociedade mais “sólida” e solidária. Ao mesmo tempo, porém, no plano virtual, eliminamos fronteiras. Aproximaram-se indivíduos e ideias; agora, propagadas assustadoramente em tempo real, sem que delas tomemos a distância necessária aos questionamentos mais profundos.
No futuro, estudiosos construirão teorias sobre as consequências sociais e econômicas dessa revolução. Pessoalmente, ao buscar conteúdo na grande rede, me comporto como uma arqueóloga cuidadosa, que busca separar da areia, alguma jóia do deserto. Mas a tarefa de encontrar conteúdo relevante (e pessoas autênticas) em um ambiente bombardeado por todo o tipo de assunto, nem sempre é fácil. Distinguir o real do falso é o maior desafio. Agregue-se, ainda, outra preocupação: separar o que é produto humano do material criado e multiplicado pela inteligência artificial.
Como toda ferramenta, os meios de comunicação moldam-se ao uso que fazemos deles. Se a propaganda enganosa, aliada aos recursos da inteligência artificial, provoca prejuízos irreparáveis aos indivíduos, no plano pessoal, seu potencial de dano é infinitamente multiplicado quando a vítima é um país inteiro. Quando mitos são forjados em projetos de marketing. Quando o conteúdo falso, disseminado como vírus, por meio de robôs, pessoas mal-intencionadas ou incautos e desavisados replicadores, visa atingir os princípios democráticos e as instituições legitimamente constituídas, como o judiciário e o sistema eleitoral.
A democracia, como expressão da vontade da maioria legitimamente eleita, pressupõe o debate proativo dos temas de interesse da coletividade. Pressupõe o diálogo político e construtivo com todos os segmentos, em favor dos interesses comuns da sociedade. O que esperar, contudo, quando tal debate fica viciado pelo uso proposital e reiterado de notícias falsas? Quando o que deveria ser terreno fértil de novas ideias e discussão de projetos para o país vira cenário lamacento de vídeos de gosto duvidoso e visível conteúdo adulterado? Não sei a opinião do leitor, mas, em mim, esses questionamentos causam muita apreensão. Porque longe de representar qualquer ameaça à liberdade de expressão, coibir, por meio da lei, a “comunicação enganosa em massa” é garantia da normalidade democrática e da paz social. E sobretudo, do direito de acesso à informação saudável e de qualidade: pressuposto básico para desenvolver o pensamento crítico em uma sociedade madura.
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