A linguagem do silêncio

Estar com alguém com quem seja possível trocar silêncios é um privilégio. Compreender o outro e se fazer compreendido, sem palavras, é um raro prazer, sobretudo, em tempos de comunicação instantânea, massiva e desenfreada.

Dom Quixote e Sancho Pança de José Moreno Carbonero (1911)/ Via Google Arts&Culture.

Dia desses, durante o café da manhã, pedi àquela simpática assistente virtual em forma de esfera, para reproduzir um samba antigo, que não saía da minha cabeça desde a noite anterior. Sem sucesso. Nas tentativas de atender meu pedido, apareciam outras canções com títulos semelhantes. Em dado momento, sem conseguir ouvir a música desejada, repeti o nome do compositor, de forma pausada e com a voz um pouco mais elevada. A resposta me surpreendeu: a Inteligência Artificial, parecendo incomodada com o comando, respondeu no mesmo tom: – Não sei! E desligou, concluindo a frase com um grande ponto de exclamação o que, não fosse o fato de se tratar de uma entidade não humana, deixaria evidente seu desconforto com minha insistência.

Na sequência, fiquei calada. Estava claro que um diálogo proveitoso com a máquina, naquela hora, não seria mais possível. O samba já não estava nos meus pensamentos. A partir daquele momento, comecei a meditar sobre o futuro e nossas relações com as máquinas inteligentes (mas isso é assunto para outra crônica – DR no café da manhã nem pensar, ainda que fosse com uma fofa bolinha falante). Pensei, então, na importância do silêncio num mundo tão sobrecarregado de palavras e informações. Lembrei de Cervantes e das muitas passagens, nas quais o cavaleiro andante suspira e agradece, aliviado, os raros instantes em que Sancho Pança parava de tagarelar. Degustei meu café apreciando o “maravilhoso silêncio”, tão comemorado por Dom Quixote.

Se o falar demais é sempre enfadonho, por outro lado, muitas vezes, nos deparamos com situações raras, nas quais a palavra é absolutamente desnecessária. Nesses momentos especiais de verdadeiro encontro com o outro, vivenciamos um sentimento de paz e tranquilidade capaz de dispensar a linguagem verbal. A vida ensina que algumas pessoas devem ser apenas sentidas. Há com elas uma espécie de sinergia que dispensa as formas de diálogo verbal. Desde criança, sempre fui atraída por pessoas assim, junto das quais poderia permanecer calada, sem que isso tornasse o ambiente pesado ou constrangedor. Estar com alguém com quem seja possível trocar silêncios é um privilégio. Compreender o outro e se fazer compreendido, sem palavras, é um raro prazer, sobretudo, em tempos de comunicação instantânea, massiva e desenfreada.

‘Estar com alguém com quem seja possível trocar silêncios é um privilégio’, Luciana Konradt

Se, muitas vezes, há o dever de falar, de deixar claro nossas posições em face desse ou daquele fato, das mazelas ou injustiças, noutras tantas ocasiões, calar pode ser a melhor opção. O entendimento tácito, a mensagem nas entrelinhas ou o gesto podem ser mais eficazes para comunicar o que pretendemos. Na Roma antiga, Tácita era o nome da deusa dedicada ao silêncio.  Dela era a responsabilidade pela proteção contra os malefícios causados pelas palavras. A viver nos dias de hoje, com perfil nas redes sociais, a divindade teria tarefa das mais difíceis ao tentar separar o conteúdo relevante dos absurdos e das manifestações de ódio.

Em um mundo onde grande parte das relações se tornaram “líquidas” e “fluídas”, na definição do filósofo Zygmunt Bauman, os males causados pela palavra se intensificaram. Na era globalizada, o culto ao consumo, ao individualismo e a proliferação de vínculos artificiais e voláteis substituiu antigos padrões de convívio, existentes em uma sociedade mais “sólida” e solidária. Ao mesmo tempo, em que a era digital eliminou fronteiras e aproximou indivíduos, a propagação, em tempo real, de ideias,  sem que delas tomemos a distância necessária aos questionamentos mais profundos, enfraqueceu a verdadeira consciência da realidade e o debate salutar de seus problemas. Enfraqueceu a discussão e a vasta conversa boa.

Seja no ambiente virtual ou no mundo real, onde alguns ainda insistem em viver, encontrar pessoas que sabem apreciar o bom silêncio é sempre uma alegria. Saber que não é necessário dizer tudo; que não precisamos opinar sobre todas as coisas ou expressar o tempo inteiro nossos sentimentos é, de fato, libertador. Um sopro de leveza contra o bombardeio constante de informações. Em tempos de ansiedade coletiva pelo dizer, muitas vezes, calar pode ser um gesto de amor-próprio e pelo outro.

Leia Também: Sobre crônicas e coisas nem tão banais.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *