Entre os mais de quarenta convidados da programação principal da FLIP 2024, há apenas dois autores nordestinos e uma nortista.
Faltando um mês para a abertura da FLIP 2024, que acontece entre os dias 9 e 13 de outubro, a curadoria divulgou o programa principal desta que é a maior festa literária do país. Este ano, a Festa Literária Internacional de Paraty homenageia o cronista e jornalista João do Rio, figura seminal para a compreensão da tradição de crônicas jornalísticas na cultura brasileira.
A escolha do homenageado, particularmente, me surpreendeu positivamente. João do Rio está longe de ser um autor livre de polêmicas, mas é um bom retrato de seu tempo, além de ter contribuição inegável para a literatura brasileira. Vale o recorte de que João era um homem negro e gay e que alcançou popularidade no início do século XX.
Se a escolha me saltou positiva, o anúncio dos primeiros convidados pareceu igualmente surpreendente. Esse é o primeiro ano de curadoria de Ana Lima Cecilio, que tem formação em filosofia pela USP, mas que trabalha no mercado editorial há mais de 20 anos.
Por outro lado, havia em mim a preocupação quanto à continuidade do programa aberto por figuras como Milena Britto e Fernanda Bastos, sobretudo a primeira. Se afastando um pouco mais do teor burguês que a Flip já podia apresentar (colocando num lugar quase isolado de um dos estados mais culturais do Brasil o debate sobre a literatura), a Festa sob comando das duas pesquisadoras ganhou uma roupagem muito mais diversa e colocou no centro o debate das desigualdades, violências e da invisibilidade da produção literária de grupos marginalizados.
Bom, digamos que minha preocupação foi válida.
Micheliny Verunschk e Odorico Leal são os únicos autores nordestinos no programa principal da FLIP 2024
A Festa Literária Internacional de Paraty talvez nunca esteve tão vazia de autores nordestinos. Se antes estavam entre os seus visitantes figuras como João Ubaldo Ribeiro, Jorge Amado, Caetano Veloso e tantos outros, esse ano o esvaziamento é quase total.
Aliás, nem é preciso ir longe. Ano passado o programa principal da FLIP recebeu Itamar Vieira Jr., Carla Akotirene, Denise Carrascosa e Jorge Augusto apenas da Bahia. Este ano não há nenhum autor baiano. Ano passado também Socorro Acioli, do Ceará, foi a autora que mais vendeu na FLIP.
O que aconteceu? Ou a curadoria da FLIP tem total desconhecimento da literatura que é produzida no norte/nordeste ou resolveu resgatar o caráter clubista sudestino da festa. Não sei qual das opções é pior.
Bom, falando mais precisamente do Nordeste, visto que vivo aqui e conheço a cena literária daqui, posso falar que existe uma literatura viva e pulsante por aqui. Luciany Aparecida, que anteriormente já esteve na FLIP, é semifinalista do Oceanos, Stênio Gardel se tornou o primeiro autor brasileiro a receber o National Book Awards. Não apareceram entre os convidados.
De fato, Micheliny e Odorico são duas preciosidades da literatura nordestina. Mas não apenas eles.
FLIP convida apenas uma autora nortista e confirma viés mercadológico da curadoria
A situação ainda consegue ser pior quando falamos do Norte do país. Apenas uma autora foi convidada: Txai Suruí, de Rondônia. Em compensação, chove na programação da FLIP aqueles que são figurinhas carimbadas no mercado editorial.
Não é uma programação de se jogar fora. Há ótimos debates, inclusive sobre a questão da Palestina, dos povos originários e o circuito de homenagem ao autor também está bem interessante. Mas é um tanto chocante essa discrepância regional. Airton Souza, por exemplo, é finalista do Oceanos e um nome interessantíssimo do Norte que eu esperei aparecer entre os convidados.
Em abril deste ano, ao ser anunciada Ana Lima Cecilio como curadora, o jornal O Globo publicou uma reportagem com o seguinte título: “Quem é Ana Lima Cecilio, a nova curadora da Flip que promete montar a programação com olhar de livreira”. No fim, a programação ficou mais com olhar de lobby que com olhar de livreira, já que, apesar dos nordestinos e nortistas também venderem livros neste país, foram praticamente desprezados da programação.
A reportagem d’O Globo também destaca as críticas que as curadorias anteriores receberam: menos “celebridades pop” da literatura e mais não-ficção. Acho que são críticas válidas. Mas é inegável que a FLIP vinha caminhando para se tornar um catalisador de novos talentos, vozes que se apresentavam no maior palco de literatura do país para mostrar o que vinham produzindo.
Aparentemente, é o fim de uma era e essa FLIP tá bem “Clube do Bolinha”.
De fato, este ano a programação trouxe muitas atrações internacionais, sendo alguns bastante celebrados entre o público. Não me incomoda nem um pouco chamar autores internacionais. Pelo contrário, é preciso fortalecer esses laços. Entretanto, são 13 atrações internacionais no programa principal e apenas 3 autores do eixo norte/nordeste.
Além disso, a surpresa de ter Felipe Neto entre os convidados foi realmente interessante. Não tirando o mérito de sua atuação política nos últimos anos, mas Neto é convidado para a FLIP após lançar o seu primeiro livro que não é destinado ao público majoritariamente adolescente.
A quem interessa consagrar Felipe Neto como pensador contemporâneo no palco da Flip? Provavelmente às mesmas pessoas que interessam excluir os autores nortistas e nordestinos.
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Reflexão muito importante!!! Excelente texto!