A testemunha de um inconfidente apaixonado: a casa onde viveu Tomás Antônio Gonzaga em Ouro Preto

Após o exilio, a casa onde viveu Tomás Antônio Gonzaga, em Ouro Preto, continuou a funcionar como ouvidoria, até a extinção do cargo de ouvidor, nas primeiras décadas do século XIX. Só virou museu muito tempo depois

Casa onde viveu Tomás Antônio Gonzaga, entre 1782-1788, em Ouro Preto. Foto: Danilo Moreira/ Acervo pessoal

Ouro Preto, em Minas Gerais, já é um destino mundialmente conhecido pelas igrejas, casarões e museus repletos de riqueza histórica. A cidade, que chegou a ter mais habitantes que Nova York, guarda tesouros impressionantes, inclusive da literatura. É lá que fica a Casa Tomás Antônio Gonzaga, que eu tive a oportunidade de conhecer em agosto.

O imóvel setecentista, que fica de frente para a Igreja de São Francisco de Assis, foi residência do poeta e inconfidente Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), que viveu lá por seis anos, entre 1782 e 1788, enquanto ocupava o cargo de ouvidor de Vila Rica (antigo nome de Ouro Preto). A casa, atualmente, sedia a Secretaria Municipal de Turismo Indústria e Comércio de Ouro Preto, mas está aberto para visitação.

Placa indicativa, com a antiga grafia do nome do autor/ Foto: Danilo Moreira – Acervo pessoal

Gonzaga é famoso principalmente pelo livro “Marília de Dirceu”, publicado pela primeira vez em 1792. Na obra, símbolo do arcadismo no Brasil, o autor declara seu amor à Marília. Especialistas atribuem à Maria Doroteia Joaquina de Seixas (1767-1853), que viveu em Ouro Preto na mesma época do poeta, o tal nome que inspirou Tomás a escrever os versos.

Os anos anteriores

Tomás nasceu no dia 11 de agosto de 1744 na cidade do Porto, em Portugal. Era filho de mãe portuguesa (Tomásia Isabel Clark) e de pai brasileiro (João Bernardo Gonzaga).

Ele ficou órfão ainda bebê e veio morar com o pai no Recife, em 1751. Posteriormente, viveu em Salvador, onde o pai atuava na magistratura, e chegou a estudar no Colégio de Jesuítas. Ainda adolescente, retornou a Portugal a fim de completar os estudos, matriculando-se na Universidade de Coimbra, na qual concluiu o curso de Direito aos 24 anos. Após formado, exerceu sua profissão como advogado.

Retrato ilustrativo de de Tomás Antônio Gonzaga (grafado Tomaz), em uma das paredes da casa / Foto: Danilo Moreira – Acervo pessoal

Gonzaga se candidatou a uma cadeira na Universidade de Coimbra, apresentando uma tese intitulada “Tratado de Direito Natural”. Em 1778 foi nomeado juiz-de-fora na cidade de Beja, onde atuou até 1781.

Foi no ano seguinte que, ao ser indicado para o cargo de Ouvidor Geral na comarca de Vila Rica (Ouro Preto), é que Tomás se mudou para a cidade mineira, e ocupou o imóvel por seis anos. Foi esse casarão que tive o prazer de visitar.

A história bem ali

Como eu costumo sempre dizer, em um país em que não se costuma valorizar o seu patrimônio devidamente, a cidade de Ouro Preto é quase um milagre. É caminhar por várias de suas ladeiras e, de repente, por exemplo, cruzar com uma casa que foi de uma figura histórica, geralmente indicada por placas.

Creio ser a primeira vez que visitei um imóvel onde viveu um escritor, e acredito ser um dos mais antigos do país com essa temática. Um ponto interessante é que o acesso é gratuito, diferente de outras atrações locais. Logo quando você sobe as escadas, já se depara com alguns versos de Marília de Dirceu. Esse amor tão emblemático está presente em toda a casa, de alguma forma.

Versos de “Marília de Dirceu”, espalhados pela casa. Foto: Danilo Moreira/ Acervo pessoal

Ao chegar na sala, é possível encontrar alguns móveis de época, como uma escrivaninha e uma enorme mesa de sala de jantar. O som do assoalho e o cheiro de madeira antiga faz imergir em uma viagem no tempo. Os cheiros nos fazem mentalmente abrir um livro antigo e tentar imaginar quais histórias já aconteceram ali.

Áreas internas da casa onde viveu Tomás, no século XVIII. Foto: Danilo Moreira/ Acervo pessoal

O cômodo é bem iluminado por janelas de frente para a Igreja de S. Francisco de Assis, que naquele dia, infelizmente, havia ao fundo a fumaça das deploráveis queimadas que tem assolado os dias secos no Brasil.

Mas, naquela sacada, de frente para a rua movimentada, deu para imaginar o poeta debruçado ali, olhando para a casa onde provavelmente vivia a sua amada. O local também conta com representações da imagem de Tomás que (sendo bem sincero, me lembrou algum cantor de metal dos anos 1980, pode ser a cabeleira) e também de Marília, de acordo com o consenso que especialistas chegaram sobre sua imagem.

O imóvel também conta com outros cômodos também com móveis históricos, além de um jardim, onde encontrei dois simpáticos gatinhos, que repousavam naquela tarde ensolarada.

Há também um quintal na parte de baixo, que conta com esculturas, uma delas, criadas por Evandro Carneiro em 2011, em homenagem à figura de Marília.

Escultura de Evandro Carneiro, que representa Marília de Dirceu (à esquerda); na outra foto, mais uma representação da musa de Tomás, mas não consegui identificar a autoria. Foto: Danilo Moreira/ Acervo pessoal

E quem foi a tal “Marília”?

Nascida em 1767, Maria Doroteia Joaquina de Seixas era de uma família rica e prestigiada da antiga Vila Rica, descendente de portugueses.

O pai de Maria Doroteia, Capitão Bhaltazar João Mayrink, casou-se em 1765 com Maria Doroteia Joaquina de Seixas, de quem a filha era homônima. Ele veio para Vila Rica atraído por dois irmãos padres que viviam ali. Assim como ele, boa parte dos familiares de “Marília” eram militares, como os irmãos José Carlos Mayrink, que se tornou senador do Império, e Francisco de Paula Mayrink, tenente-coronel de Cavalaria. Ela também teve mais duas irmãs, Anna Ricarda de Seixas Mayrink e Emerenciana Evangelista de Seixas Mayrink.

Depois que o pai ficou viúvo, Maria Doroteia e os irmãos, ainda crianças, passaram aos cuidados das tias Teresa e Catarina e do tio João Carlos, irmãos solteiros de sua esposa. Balthazar foi morar numa fazenda em Itaverava (MG), com sua segunda esposa.

Educada para ser uma distinta senhora para a sociedade, Maria Doroteia foi letrada, aprendeu etiqueta, pintura, jardinagem e música.

Gonzaga foi morar em Ouro Preto em 1782 e acredita-se que no ano seguinte é que o poeta conheceu Maria Doroteia. Ela tinha o costume de frequentar a casa da tia Antônia, que ficava ao lado da casa do autor. Acredita-se que foi assim que passaram a se ver.

Convém aqui dizer que Tomás tinha cerca de 38 anos e, “Marília” cerca de 15. O que é impensável e perfeitamente repreensível nos dias atuais, na época, em pleno século XVIII, era comum que moças muito novas já estivessem dispostas ao casamento. Os dois se apaixonaram e engataram um relacionamento sério e chegaram inclusive, a marcar o casório, que não aconteceu, conforme eu contarei mais à frente.  

Maria Doroteia (Marília) representada em um quadro ao lado de Tomás Antônio Gonzaga, na casa; à direita, ilustração em selo postal, em 1967 (Wikimedia Commons)

Mulher considerada à frente de seu tempo, anos depois, aos 25 anos, Maria Doroteia pediu emancipação do pai para gerir seus próprios bens. Na época, era uma forma da mulher ter sua autonomia financeira, visto que os homens gerenciavam os recursos da família e, na ausência deles, era comum que as mulheres fossem enviadas para conventos.

Maria entrou para a Irmandade da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Ouro Preto e foi Ministra da Ordem por duas vezes. Era também atuante no espaço público da cidade, conforme relata o portal do Museu da Inconfidência, já que atas da Câmara de Vereadores da cidade guardam registros de cobranças em reparos de encanamentos de água do chafariz público e de sua fonte particular.

Sobre a sua vida amorosa após o envolvimento com Tomás, existem algumas divergências entre especialistas. Enquanto alguns acreditam que Doroteia nunca se casou ou se apaixonou por outro homem, há quem considere a hipótese de que a musa teve um filho, o médico Anacleto Teixeira de Queiroga.

Maria Doroteia morreu em 1853, aos 84 anos, mas até hoje, é homenageada em pontos turísticos da cidade. No Museu da Inconfidência, ao meu ver, o ponto turístico mais famoso de Ouro Preto, por exemplo, há uma de suas obras como – a pintura da imagem de Santa Madalena, além de constar o seu testamento, ao lado de sua lápide.

A cidade de Marília, no interior de São Paulo, ganhou este nome do fundador, Bento de Abreu Sampaio Vidal, como homenagem à personagem do livro, que ele tinha lido em uma viagem na Europa.

O inconfidente Tomás

Em 1786, Tomás chegou a ser nomeado desembargador na Bahia, mas adiou a transferência para casar-se com Maria Doroteia. Porém, como eu contei acima, essa união não se consolidou. Tampouco assumiu o novo cargo. O coronel Joaquim Silvério dos Reis denunciou a Inconfidência Mineira. Mesmo com a “bomba” explodindo, Gonzaga permaneceu na cidade. Em 1789, também foi acusado de participar do movimento.

Na época, pessoas da elite econômica mineira, como o minerador e poeta Alvarenga Peixoto, o poeta Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) e Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes (1746-1792), integravam a iniciativa contra a coroa portuguesa. O objetivo dos inconfidentes era libertar a então colônia do domínio econômico da metrópole. Mas, como se sabe, o movimento foi descoberto e teve como “bode expiatório” o próprio Tiradentes, enforcado em 1792.

Ouro Preto, aliás, guarda um grande acervo sobre o assunto, como o já citado Museu da Inconfidência, que reúne documentos preservados das sentenças, os instrumentos de penas e até os restos mortais dos inconfidentes.

À sua frente, há o monumento em homenagem a Tiradentes, inaugurado em 1894, no local onde sua cabeça teria sido exposta “como exemplo”. Hoje, o local é um famoso ponto turístico da cidade em que é possível sentar-se e contemplar a Praça, que leva o nome do mais famoso inconfidente.

O Museu da Inconfidência, à esquerda, e o monumento Tiradentes, à direita. Foto: Danilo Moreira/ Acervo pessoal

E Tomás Antônio Gonzaga, acusado de integrar o movimento, foi preso e levado para a Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, onde ficou até 1792, quando foi julgado e extraditado para Moçambique, na África.

Longe de Marília

O sonho rompido não deixou que a imagem de Maria Doroteia permanecesse na mente do homem. Assim, nascia o livro “Marília de Dirceu”. Embora não cite Maria explicitamente, como já sabemos, especialistas acreditam que seja a musa que Gonzaga teve que deixar para sempre no Brasil.

Uma das janelas da casa (onde Tomás provavelmente via Maria Doroteia) e a vista para a rua; na mata atrás da Igreja S. Francisco de Assis, infelizmente, havia fumaça de queimada. Foto: Danilo Moreiro/ Acervo pessoal

A obra é dividida em três partes e tem ao todo 71 liras e 14 sonetos. A primeira parte foi publicada em Lisboa, pela Impressão Régia, no ano de 1792. Posteriormente, a obra ganhou uma segunda parte e foi publicada juntamente à primeira em 1799. A última versão só foi revelada dois anos após a morte do autor, por volta de 1810.

A obra é uma das principais expoentes do arcadismo no Brasil. O movimento árcade nasceu na Europa no século XVIII e visava resgatar as temáticas e referências da Antiguidade Clássica. As obras normalmente valorizavam ambientes bucólicos, a conexão com a natureza e idealizações da mulher amada. No livro, Tomás aborda a figura de Marília, o amor da vida de Dirceu (que pesquisadores acreditam ser o alterego do autor). Nos versos, vemos o desabafo de um amor que floresceu, mas por conta de uma intempérie do destino, foi separado. É claro que, como bom arcadista, Gonzaga evoca deuses gregos e viaja sobre as histórias da mitologia para ilustrar esse relacionamento. A obra, até hoje, é leitura presente em vestibulares e escolas do país. Estou com um exemplar que, assim que concluir a leitura, eu contarei a vocês no meu canal Plug Literário sobre o que achei.

O livro “Marília de Dirceu”, edição da ViaLeitura, que estou lendo atualmente.

Posteriormente, descobriu-se que o autor também escreveu um livro, chamado “Cartas chilenas”, uma sátira dos desmandos políticos em Vila Rica e que circulou anonimamente. A obra só foi publicada postumamente em 1845 e após muito tempo, estudiosos atribuíram a autoria a Tomás.

E após o exílio em Moçambique, o que aconteceu com Tomás Antônio Gonzaga? Sabe-se que ele se casou com a rica Juliana de Sousa Mascarenhas, com quem teve dois filhos. Mais tarde, em 1806, ele se tornou procurador da Coroa e da Fazenda do país e, três anos depois, juiz da alfândega. Viveu no país africano até o fim da vida, e faleceu em fevereiro de 1810, com cerca de 65 anos.

E como ficou a casa?

Após o exilio, a casa onde viveu Tomás Antônio Gonzaga, em Ouro Preto, continuou a funcionar como ouvidoria, até a extinção do cargo de ouvidor, nas primeiras décadas do século XIX. Posteriormente, sediou a chefatura de polícia e, hoje é um dos pontos turísticos mais conhecidos de Ouro Preto.

O interior da casa está, ao meu ver, relativamente conservado. Já o exterior possui algumas marcas do tempo e precisa de algumas reformas, mas nada que, na minha opinião, tire o fascínio e o simbolismo do local.  

O jardim nos fundos da casa (com os dois simpáticos gatinhos), e a escada que dá para um pátio, onde ficam esculturas em homenagem à Marília. Foto: Danilo Moreira/ Acervo pessoal

Sinto gratidão por ter estado lá, na casa de um autor clássico brasileiro, preservado em um país que cuida mal de sua memória. Para quem for visitar Ouro Preto, fica o convite para esse registro histórico que faz parte do nosso tesouro literário tupiniquim.

Endereço:

Rua Cláudio Manoel, 61 (antiga Rua do Ouvidor), Centro – Ouro Preto, MG.

Horário de Funcionamento:

Segunda a sexta-feira, das 8h às 18h, sábados, domingos e feriados, das 8h às 17h.

E aí, gostaram de saber mais da história de um ícone da literatura brasileira?

Com informações de: Museu da Inconfidência, eBiografia, Brasil Escola, Ilumine o Projeto, Blog da Panda Books, Conheça Minas

Fotos: Danilo Moreira/acervo pessoal

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FONTES

https://museudainconfidencia.museus.gov.br/conheca-a-historia-de-marilia-de-dirceu/#:~:text=Maria%20Doroteia%20Joaquina%20de%20Seixas,atribui%C3%A7%C3%B5es%20femininas%20impostas%20%C3%A0%20%C3%A9poca.

https://www.ebiografia.com/tomas_antonio_gonzaga

https://www.conhecaminas.com/2019/01/1894-inauguracao-do-monumento.html

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1 comentário em “A testemunha de um inconfidente apaixonado: a casa onde viveu Tomás Antônio Gonzaga em Ouro Preto

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