‘Forte Como a Morte’, de Otto Leopoldo Winck, é um romance em diálogo com a tradição e com o seu tempo

‘Forte Como a Morte’, de Otto Leopoldo Wink irá agradar quem leu e gostou de ‘Lavoura Arcaica’, de Raduan Nassar, de ‘Sagarana’, do Guimarães Rosa, mas também de ‘Torto Arado’, do Itamar Vieira Jr.

Otto Leopoldo Winck, autor de ‘Forte como a morte’ (ABOIO, 2023). Foto: Fernanda Mariane Alves (Divulgação).

Já está no radar dos críticos e dos acadêmicos que a literatura brasileira feita a partir de 2018 para cá retoma os temas e a estética do romance modernista de 30. O tema da terra, as desigualdades sociais, a saída do eixo urbano em direção ao (já problematizado tema do) “Brasil Profundo” da região rural são alguns dos exemplos de como essa estética recente é um desdobramento dessa fase da história literária que faz parte de nosso cânone.

Eu penso que o livro “Forte Como A Morte” (Aboio, 2023) entra nessa tendência de nosso tempo. Nesse sentido, ele abre direto diálogo com outros autores que estão pensando o mesmo tema, como os baianos Itamar Vieira Jr. e Luciany Aparecida, bem como a cearense Socorro Acioli. No entanto, há alguns pontos óbvios que diferenciam Otto Leopoldo Winck dos demais autores: a geografia.

Ora, Otto é carioca radicado em Curitiba e fala do conflito de terras a partir da perspectiva do sulista e, mais precisamente, do paranaense. Isso muda muita coisa? Não necessariamente. As fronteiras que dividem o Brasil, esse país de tamanho continental, são quase sempre imaginárias. Do Norte ao Sul, existe uma brutal concentração de renda (leia com a voz da economista Maria da Conceição Tavares), uma extensa faixa de miseráveis e também características culturais em comum, a grande presença da religião como fator de manutenção de poder, cidades pequenas comandadas por famílias históricas e por aí vai. 

Todos esses elementos podem ser lidos em “Forte Como a Morte”, livro que se passa no século XX, cobrindo o período da ditadura militar e também do pós-ditadura, mas que fala muito sobre o seu tempo.

Materialismo vs. Fé

“A Incredulidade de São Tomé”, de Caravaggio (Reprodução).

Na apresentação do livro, a escritora Maria Valéria Rezende, apresenta o livro como uma “trança”, já que três núcleos compõem a obra. Seriam esses: a história da jovem estigmatizada Rosália (já falaremos dela), o monólogo interior de um padre bastante decepcionado com a religião, e por fim uma densa e profunda discussão teológica e filosófica sobre o texto de Filipenses 2 e o mistério do “esvaziamento” do Deus cristão que assumiu forma humana.

Essas três partes estão sempre a se intercruzar, no sentido de que cada “capítulo” (que não é necessariamente dividido capítulos, mas sim períodos marcados no texto) busca dar conta de um desses núcleos e se revezam entre si até o fim da história. É um recurso interessante e pelo qual eu confesso ter uma predileção, embora também haja implicações indesejadas. Penso que a discussão teológica, densa, mas muito necessária, poderia ser mais espaçada, uma vez que a sua frequente retomada faz com que o leitor não absorva toda a sua complexidade, especialmente por se tratar de trechos pequenos. O conteúdo, entretanto, é fenomenal.

A discussão retoma importantes pensadores da filosofia e teologia ocidentais para investigar o mistério do Cristo que é inteiramente homem e inteiramente Deus ao mesmo tempo. Cumpre no texto a função de nos apresentar o fio condutor que costura toda a narrativa: o conflito materialismo versus fé, presente na inquietação do padre cético, no mistério das chagas de Cristo da menina estigmatizada e na luta de classes que aqui nos é apresentada por meio do Movimento Sem Terra.

As Chagas de Cristo

Vamos por partes: a narrativa começa com a menina Rosália que, um belo dia, “ao acordar de sonhos intranquilos” , vê brotar em seu corpo as chagas de Cristo: furos nas mãos, nos pés e o lado rasgado sob o peito. Os estigmas constroem o imaginário católico há séculos e, obviamente, irá despertar atenção do povo da zona rural do Paraná.

De início, os pais de Rosália, trabalhadores rurais humildes, buscam acreditar que isso é coisa “da cabeça da menina” e que logo ela ficará bem. Não me convence o argumento, não é verossímil. Quem pensaria que um corte relativamente profundo e que sangra continuamente seria psicossomático? Sobretudo pessoas sem muita escolaridade no meado do século XX, quando essa discussão não estava como está hoje. 

Os pais de Rosália tentam não fazer grande alarde, chamam o médico que, impressionado com o que se passa, manda chamar o padre, com certo sarcasmo (o médico é um agnóstico ou ateu). A partir daí o que vemos então é o desenrolar da história em direção a um verdadeiro culto à menina estigmatizada. O autor desenvolve com maestria esse enredo, mostrando a fé das pessoas que começam a ver Rosália já como uma santa, embora não haja confirmação da igreja. São feitas caravanas e cultos à estigmatizada e as pessoas levam doentes e feridos para que ela os abençoe.

Nesse núcleo, ainda conhecemos o personagem Zé Candonga, um empregado da família de Rosália, pouco mais velho que ela. Há interesse romântico mútuo entre Rosália e Zé que é bem folhetinesco, mas bem feito. É um casal que funciona na narrativa, ambos os personagens possuem carisma e há química entre os dois.

Quando o narrador nos conduz à vida adulta de Rosália, iremos encontrá-la agora casada com Zé que assume o seu nome de batismo: “Felício”. É engraçado o jogo de nomes no livro. Aliás: é bom.

“Candonga” é de origem quimbundo, e é claramente a entrada do elemento afro-diaspórico nessa narrativa predominantemente de elementos ocidentais. Também significa “ardiloso, enganador” e é bem representativo da fase do personagem em que ele é ainda pueril demais para Rosália.

Transforma-se, então, em Felício, de origem no latim, e representa a fase mais madura e “convertida” do personagem. No texto, o autor apresenta “Rosália” como referência a Rosa Luxemburgo. Faz sentido. Felício e Rosália, depois de casados e com três filhos, vão morar em um assentamento do MST que, no livro, é chamado apenas de “Movimento”.

Crer ou não crer?

Ao mesmo tempo em que se narra a história de Rosália e Felício, narra-se também a história de um padre cínico. Se durante a narrativa da história da menina estigmatizada (tanto na fase juvenil quanto adulta), temos um narrador-testemunha, na narrativa do padre o que há é um monólogo interior, sem travessões marcando os diálogos. Esse recurso consegue fazer o leitor entrar no emaranhado dos pensamentos desse homem que parece estar sempre imerso em seu próprio raciocínio.

O que pensa o padre que é tão cordial com os fiéis de sua humilde paróquia? Pensa em ter relações sexuais com as mulheres que vão à missa, pensa que os símbolos religiosos são falsos e duvida até mesmo do próprio Cristo. De início, é estranho o contato com um personagem que não apresenta, em momento algum, culpa pelo que pensa, nem dúvida quanto ao seu posicionamento.

Para nós, leitores, faria mais sentido se houvesse nesse padre ainda um pouco mais de receio ou remorso. Só que ele está convencido. No decorrer do texto, percebemos que ele não é assim por acaso. Trata-se de um padre está frustrado com a religião, sobretudo com o uso dela para a opressão dos mais pobres e oprimidos.

Se por um lado o padre é cínico por seu fingimento, ele é altruísta e interessado na justiça social e na vitória da luz sobre o obscurantismo em tempos de ditadura e também no pós-ditadura. Ele pensa sobre os presos políticos, também sobre os trabalhadores sem terra do MST e sobre todos os oprimidos nessa nossa periferia do capitalismo.

É um personagem complexo de quem aprendemos a gostar (veja: “aprendemos”) e tem um final absolutamente iluminado. 

Com ‘Forte como a morte’, Otto Leopoldo Winck prova ser um romancista que domina o gênero

O autor Otto Leopoldo Winck/ Foto: João Debs (Divulgação)

Concluí o livro feliz de ter conhecido Otto Leopoldo Winck que carinhosamente nos enviou o livro. Que livro!

O texto é bem escrito, tem o uso dos recursos de narração que cooperam para o enredo da história (não são meras firulas estéticas), e é profundo. 

Otto faz o uso impecável da narrativa bíblica, introduzindo-a no texto em momentos certo, sem dar exata citação de onde encontrá-los na Bíblia Sagrada. Eu, que cresci com educação religiosa, consegui reconhecer (se não todos) muitos. Eles estão ora escondidos, ora mais explícitos, sempre funcionais (coisa boa é ler um romance que funciona, né?). Mostra que o autor conhece muito da Bíblia e soube a utilizar com sabedoria. 

Otto Leopoldo Winck escreveu uma obra que merece ser lida, que está alinhada com o seu tempo, mas também com a tradição do romance brasileiro. O texto do autor irá agradar quem leu e gostou de “Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar, de “Sagarana”, do Guimarães Rosa, mas também de “Torto Arado”, do Itamar Vieira Jr.

Os personagens são profundos, mesmo quando não tão verossímeis. Aliás, todo o romance tem um ar folhetinesco de novelão das seis que, particularmente, é agradável. Seguindo nessa perspectiva, devo alertá-los de que o final é previsível. Nós já o vemos chegando desde o meio do livro. Mas isso não o torna menos impactante. É um bom final, para um bom livro.

Saiba onde comprar livro ‘Forte como a morte’

Capa do livro ‘Forte como a morte’, de Otto Leopoldo Winck que sai pela Aboio (2023).

Você pode comprar o romance “Forte Como a Morte” (2023) no site da Aboio e pela Amazon no formato Kindle.

Encontre o autor Otto Leopoldo Winck no instagram pelo @otto.winck.

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