‘As últimas palavras de Nélida Piñon’, por Ewerton Ulysses Cardoso

O editor da Revista O Odisseu escreve sobre o livro ‘Os rostos que tenho’, obra póstuma de Nélida Piñon, e sobre o legado da escritora que se autodeclarava uma ‘feminista histórica’.

A escritora Nélida Píñon (reprodução)

Nélida Piñon faleceu em dezembro de 2022, ano especialmente difícil para a arte brasileira. Faleceu também naquele fatídico ano Lygia Fagundes Telles, Milton Gonçalves e Jô Soares. Nélida foi a última dentre esses listados, já no finzinho do ano. Saiu de cena como verdadeira intelectual que era, após aparecer nos jornais pelos seus últimos feitos em devoção à cultura brasileira.

          Naquele mesmo ano de 2022, junto ao Instituto Cervantes, inaugurou a Biblioteca que leva seu nome: Biblioteca Nélida Piñon no bairro do Botafogo, no Rio de Janeiro. Foi uma doação do próprio acervo pessoal de Nélida, incluindo obras com dedicatórias de amigos escritores como Carlos Drummond de Andrade, Mario Vargas Llosa e Clarice Lispector. A biblioteca conta com sete mil títulos disponíveis gratuitamente para os cadastrados no instituto. A própria Nélida definiu o feito como um presente ao povo do Rio de Janeiro.

          Aqui, então, começo a falar do livro póstumo “Os rostos que tenho” (Record, 2023). Diferente de muitos póstumos, essa obra foi finalizada por Nélida que também escolheu o título, os textos que entrariam, os nomes dos capítulos e tudo mais. Trata-se de seu último livro de memórias e, portanto, seu depoimento final, suas últimas palavras, as últimas coisas que Nélida gostaria de registrar em vida para o futuro.

          Digo isso, inclusive, porque Nélida sabia da previsão de morte iminente durante a produção do livro. Ao longo dos capítulos curtos, ela fala sobre saber da própria morte e, como uma escriba, uma escrava da palavra, como ela mesma se apresenta, tinha muito o que deixar como seu testamento literário para as gerações futuras. No capítulo “Morte anunciada”, Nélida escreve:

O anúncio da minha morte por parte do médico não me lançou a um abismo confessional. Ou obrigou-me a passar em revista a existência como uma espécie de purificação e esboçar um retrato favorável. […] À parte lutar por acreditar que a partida era real, nunca uma fantasia ficcional, ordenei papéis, semeei o que devia. Ia retirando da folhinha os dias que me restavam.

Nélida Piñon em “Os rostos que tenho”

A partir desse relato, penso que Nélida queria pôr neste livro seu depoimento final ao país que escolheu amar. Foi o que ela deixou para ser dito sobre os assuntos que inquietavam a sua mente. E o que, de fato, a inquietava?

          Em “Os rostos que tenho”, Nélida retoma alguns dos temas mais recorrentes de sua obra: a questão da nacionalidade, da brasilidade, a herança galega, a língua (sua pátria), a amizade com escritores notáveis (Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, Mario Vargas Llosa, Susan Sontag e outros) e a tecelagem do texto literário como um ofício da maior importância.

          Faço questão de enumerar tais coisas por conta das recentes tentativas de pôr na boca de Nélida palavras que ela não disse ou pareceu não se importar em dizer. Um episódio me chama atenção. Ano passado, a página oficial de Nélida no Instagram republicou um texto de ofensa à autora Heloisa Teixeira por conta de seu discurso de posse, em sucessão à Nélida, na Academia Brasileira de Letras. Parece que o teor da ofensa se dava ao uso do famigerado pronome neutro por parte de Heloisa.

          Ora, sobre Heloisa, falaremos depois.

          Achei um ultraje tal publicação. Essa posição de ataque não parece nada com o que a própria Nélida semeou em sua vida pública durante décadas de sua carreira. Por mais que estivesse nela a preocupação com a língua, não era de seu feitio fazer ofensa a confrades, confreiras ou qualquer outro intelectual. Não a vejo ofendendo Heloisa Teixeira, com quem mantinha relação de admiração mútua.

          Posso enumerar o porquê:

          Primeiro: Nélida se apresenta, ainda em seu último livro, como mulher feminista e feminista histórica, disposta a ficar às trincheiras da luta pelos direitos das mulheres (todas). O discurso de Heloisa foi proferido na primeira sucessão entre mulheres na história da ABL.

          Segundo: Nélida conviveu, durante décadas na ABL, com personalidades diferentes, de posicionamentos diferentes e sempre prezou pelo respeito e elegância em suas relações. Foi um exemplo de diplomacia, inclusive. Compartilhou a amizade com Rachel de Queiroz, opositora ferrenha da abordagem comunista da esquerda brasileira e que supostamente teria apoiado o golpe militar, quando ela mesma, junto a Lygia Fagundes Telles, foi a Brasília, durante o regime, para entregar o histórico Manifesto dos Mil em oposição à censura dos militares.

          Não me parece que interessava Nélida essas miudezas de intriga ideológica. Inclusive, foi o que fez em seus últimos anos de vida. Em sua última entrevista ao programa Roda Viva, posicionou-se sabiamente contra o negacionismo cientifico em tempos de pandemia e não poupou críticas ao então presidente pela sua postura inegavelmente irresponsável. A mesma Nélida não poupou críticas a outros governos, inclusive os de esquerda, quando necessário. Não cultivou agendas políticas de estimação.

          É engraçado como a autora sempre soube fugir dessas tentativas de jornalistas e pensadores pequeníssimos de colocá-la nesse lugar de crítica descabida. Em sua segunda entrevista ao Roda Viva, em 2014, um jornalista lhe perguntou sobre o uso do termo “presidenta” por Dilma Rousseff, primeira mulher a assumir o mais alto cargo do executivo. Foi perguntado com um paralelo, uma vez que Nélida foi a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras.

Nélida riu e respondeu “Fui presidente”, como quem diz “não fui presidenta”. O jornalista que fez a pergunta disse “muito bem”, como quem diz “consegui o que queria”. Mas Nélida não lhe dá o gostinho da vitória. Diz logo em seguida: “Mas ela tem esse direito” e mencionou como muitos linguistas se posicionaram a favor da flexão de gênero no substantivo.

Parece que essa coisa da língua sempre foi algo que a perseguiu. De fato, Nélida foi indiscutivelmente uma das autoras que mais respeitou a palavra e a língua portuguesa. Todos os louvores a Camões em “Os rostos que tenho” destacam isso. Nas últimas palavras de Nélida, havia, sim, uma preocupação com o futuro da língua ante às mudanças, com sincera e válida preocupação.

Por outro lado, Nélida também aponta que não tem interesse em ser defensora do antigo como o essencial. No capítulo “Antiguidade”, ela escreve:

“Não respeito a supremacia dos sábios que inflam a cultura com um cerco de arame farpado. Não, não aprovo. Mas sei também que há um compêndio recôndito acumulativo a serviço do bem, das conquistas humanas. Dos que recrudesciam as chamas do fogo com seus racontos. Eis a sopa de todos os escombros. Não somos soberanos no que sabemos”.

Nélida Piñon em “Os rostos que tenho”

Finalizo, portanto, com as palavras de Nélida que são o que me cabe dizer. Não lhes acrescento nada, não cabe e não tenho interesse. O que Nélida quis dizer, disse. Meu respeito por essa que foi uma das maiores autoras da língua portuguesa não me permite colocá-la a par de minha agenda ideológica. Não posso dizer que Nélida gostaria de ser sucedida por Heloisa Teixeira, da mesma forma que não posso dizer o contrário. Não posso dizer que ela aprovaria o atual governo ou se desaprovaria. Seria desrespeitoso. Posso dizer o que ela disse: era feminista histórica, era escriba da palavra, filha de Homero, de Camões, de Shakespeare, de Cervantes e de Machado de Assis.

          Ad immortalitatem.

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