Resenha: ‘Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias’, de Luiz Henrique Gurgel

“Porque era ele, porque era eu” (Editora Caravana, 2023)

            Escrever crônicas parece ser um ato fácil. Para a maioria das pessoas, trata-se de escrever sobre o cotidiano, sobre as suas impressões da vida. Entretanto é mais que isso. Tendo em vista nossos grandes cronistas, a exemplo de Machado, Clarice, Nelson Rodrigues, Arnaldo Jabor e outros, a crônica precisa ter um elemento importante: o estímulo ao pensamento por meio de um pequeno recorte da realidade.

            Com realidade, todavia, não falo puramente de textos de não-ficção. Há espaço para a ficção na crônica (e isso assusta muitos, acredita?). Mas a crônica, quando fictícia, deve ser dotada de verossimilhança, sendo por vezes alegoria daquilo que acontece na vida. Por isso mesmo se caracteriza o texto de Nelson Rodrigues em “A vida como ela é” como um texto de crônica, muito embora não se saiba ao certo os limites entre a ficção e a não-ficção no texto do autor.

            Bom, um dos meus planos para este ano é ler mais crônicas e me aprofundar nesse texto que foi responsável pela aproximação dos brasileiros com a literatura de sua maior qualidade. Por isso mesmo fiquei imensamente feliz ao receber “Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias”, do autor brasileiro Luiz Henrique Gurgel que, a propósito, é um amigo (embora minha admiração pela pessoa de Gurgel não influenciou em nada esta resenha).

            Gosto do título, visto que já deixa bem sugestivo a que está por vir. Com o “quase histórias”, Gurgel deixa no ar uma ambiguidade interessante que confunde um pouco o leitor. Ao longo da leitura, é provável que você se pegue em dúvida se alguns relatos são verdadeiros, se são fictícios, se o personagem que narra em primeira pessoa é o próprio Gurgel ou se ele está apenas caminhando pelas possibilidades do texto.

            O que encontramos aqui, então, são essencialmente histórias de vida com uma forte presença do fator lembrança. Todo o texto é permeado de uma nostalgia do próprio autor que deságua no texto. É impossível não pensar que existe uma influência da técnica de Proust sobre o estilo de Gurgel. O autor tem grande interesse em resgatar o que de fato se sentiu “naquela hora, naquele momento”. Para isso, abusa do resgate dos sentidos. Ao longo das crônicas, somos apresentados a cheiros, sons, imagens, toques. Tudo isso nos convence da intensidade do momento. É o autor querendo traduzir em palavras o que ocorreu sob a pele.

            Na crônica “Histórias de cheiros, cheiros de história”, Gurgel escreve:

“Tinha chovido, a cidade estava vazia e molhada, o ar úmido e quente. Ele tinha saído de um sítio no interior. Lá também havia chovido, veio embora com o cheiro gostoso de mato molhado, misturado ao agradável odor de estrume de vaca remexido. Viu cair a chuva-criadeira, que molha a terra, que enche o rio, que limpa o céu, ‘Que traz o azul’, como Elis cantava a música de Tom Jobim”.

Luiz Henrique Gurgel – “Porque era ele, porque era eu” (Editora Caravana) – p. 41

            O recurso da referência a outros textos é um recurso recorrente aqui também. Gurgel, um professor admirável, sociólogo de formação pela USP, possui um repertório imenso de músicas, frases, textos, filmes e todos os autores são citados nominalmente no texto. Enquanto leitor, isso faz com que eu me sinta subestimado. Consigo captar as referências que o autor utiliza e acho que elas são bem utilizadas, mas quando a referência é explícita, no sentido de dizer quem disse e quando disse, parece que se acreditou que o leitor não seria capaz de notar essa referência. Por exemplo, não há necessidade de dizer “como Elis cantava…”. Basta ler o recurso bem utilizado para ter na memória a voz de Elis. Vez por outra, de fato, é preciso ser mais didático e mostrar onde está a referência, mas não todas as vezes.

            O título do livro é o maior exemplo de referência a outro texto. Para a maioria das pessoas, pode ser apenas a referência à música do Chico Buarque “Porque era ela, porque era eu”, mas, como Gurgel faz muito bem em contar, se trata de uma frase do Montaigne sobre sua relação com o amigo e intelectual La Boétie.

            A partir da frase, Gurgel nos apresenta ao cãozinho Fubá, seu amigo. Aqui, o autor demonstra uma sensibilidade admirável. É notável o afeto ao cão, como essa figura de compreensão plena, representante do amor puro. Essa, que talvez seja a crônica que mais me tocou no livro, é uma demonstração admirável do que falta em muitos autores: a capacidade de sentir toda a força que reside nas entrelinhas da vida, como a força da amizade de um homem e seu cão. Um belíssimo trabalho que merece ser relido.

            O livro é tecido junto a fotografias que, imagino eu, são do acervo pessoal do autor. São fotos de pessoas, de lugares, do cão, de objetos. Parece um álbum de fotografias e é lindo de abrir. Isso ajuda muito na construção do imaginário das memórias, da vida. O conjunto da obra nos garante que Luiz Henrique Gurgel é um autor maduro, de literatura sólida, que sabe muito bem o que está fazendo quando inicia o texto, que percorre o caminho, com êxito, da palavra ao coração do leitor.

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Sobre Luiz Henrique Gurgel

O autor Luiz Henrique Gurgel

Luiz Henrique Gurgel é sociólogo de formação, jornalista e mestre em Literatura Brasileira pela USP. Foi editor de almanaque e pesquisador da História do Samba. Atualmente é professor e colaborador de publicações literárias e da área de educação. Autor do livro de contos Amores desgraciados, traduzido para o espanhol pela Caravana, também em 2023. Nas redes sociais: @luizen6

(Reprodução – Editora Caravana)

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