O escritor e pesquisador Paulo Zan (Trapaças – Caravana Editora) escreve sobre a sua própria relação com a leitura para responder à pergunta ‘Como ler literatura?’
É preciso ter um livro por perto. Digo isso pensando que, mesmo num contexto nada propício para me tornar um leitor, muito menos para escrever, as duas coisas apareceram na minha vida. Talvez meu primeiro contato com literatura tenha sido um livro de interpretação de sonhos que havia na casa da minha avó. Eu tinha por volta de três ou quatro anos, nem sabia ler ainda. Mas toda manhã minha mãe e eu íamos para a casa da minha avó. Lá estava minha tia já com o livrinho nas mãos tentando descobrir o que os seus sonhos queriam dizer. Antes de saber quem era Freud, eu já acreditava que os sonhos eram manifestação de algum sentido na nossa vida.
Depois foram os livrinhos ilustrados. Histórias da chapeuzinho; historietas de terror. Lembro de temer mas ao mesmo tempo ser obcecado pelo livro ilustrado do meu irmão que tinha uma pintura do lobisomem e da mula-sem-cabeça. Essas figuras assombraram minhas noites por um bom tempo.
Depois os clássicos adaptados para versões infantis. “Li” O homem da máscara de ferro, Robinson Crusoé, Os três mosqueteiros, etc. Guardo na lembrança imagens dos desenhos dessas narrativas mais que as histórias mesmas. De toda forma, foi um passo inicial para o gosto pelas histórias. É claro que eu não sabia nem o que era literatura, mas ela estava ali, uma verdadeira companhia silenciosa para minhas tardes de infância, em meio aos carrinhos, bonecos dos power rangers e peças de lego.
Aos nove ou dez anos, comecei a criar. Primeiro fazia desenhos, tinha cadernos com pokémons e outros personagens animados. Mas a escrita veio de fato, ainda que junto com os desenhos, com versões da história da mula-sem-cabeça em quadrinhos, onde ela era maltratada num circo ou algum tipo de exibição de acrobacias. A gente nunca sabe de onde as crianças tiram essas coisas, mas desde pequeno eu já me interessava por essas histórias.
Por um longo tempo, no início da adolescência, meu interesse maior era pelos filmes, por mundos fantásticos como “O senhor dos anéis” e “As crônicas de Nárnia”. Só bem mais tarde, aos catorze, fui de fato me tornar um leitor. Primeiro com os romances que faziam sucesso na época, como os livros do John Green, depois com coisas que eu fui “descobrindo”, como a série das crianças peculiares.
Meu gosto por literatura contemporânea, e mais especificamente aquela feita no Brasil, é bem mais recente, talvez dos últimos dois anos. E é o que de fato gosto de ler hoje. No entanto, percebo que minha formação como leitor envolveu muitas outras coisas. Essencialmente, talvez, ter algum livro ao alcance foi um motor para ler.
Então: como ler literatura?
Acho que existem muitos caminhos possíveis. Há pessoas que se formam através da literatura oral muito antes de saber que existe uma literatura escrita, e essas não são “menos” leitoras que aquelas que começaram cedo a ler a literatura escrita. Leitura é algo muito amplo, e saber ouvir, prestar atenção no assunto, auscultar é saber ler. Já pensou o que seria da literatura de Guimarães se ele não fosse “bom de ouvido”? A poesia mesmo… Para mim, a poesia é justamente a capacidade que a gente tem de pegar as palavras pelo rabo, ou seja, ouvi-las bem, auscultar a pulsação do verso, sentir os cheiros das coisas rasteiras, ter ímpeto para as magníficas cotidianidades.
Por longo tempo eu me aborreci com a poesia. Por minha culpa, é claro. Queria forçá-la ao entendimento; queria submetê-la à razão das coisas; procurar ordem; ajustar. Quando a poesia é justamente o sentir, o “ser-levado” pelas palavras, a desordem e a desrazão. É uma criança comendo chocolates meio dia.
Bom, quando me perguntam “como ler?”, eu penso que ler pode dar muito trabalho. É algo que exige persistência, que exige um mergulho no mistério que é o mundo do outro. Conhecer um novo léxico; descobrir que há outros nomes para uma janela. Mas é justamente isso que parece chamar atenção para a leitura. Tentar saber o que é “nonada”; procurar os sinônimos de “mansarda”; reaprender o som de certos objetos.
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Mas, para além das descobertas inteligíveis, tem aquilo que sentimos. Acompanhar a contagem dos tiros em “Mineirinho” com um obstáculo na goela, algo obstruindo a passagem do ar, porque naquele exato instante eu sou o outro. Abrir o livro e sentir raiva, pena, angústia… A literatura é capaz de nos tocar de muitas formas. E se já descobrimos tanto o mundo com os clássicos, imagina tudo o que ainda há para descobrir; centenas de obras que são publicadas todo ano, das quais lemos se muito uma dúzia?
Como ler? Persiste a pergunta.
Lançar os olhos (e/ou os ouvidos) ao que estiver próximo e não parar mais. Seguir atrás. Buscar pela próxima leitura. Aceitar sugestões, é claro; “nossa amigo, você precisa ler esse livro”. Arriscar. Você vai rir, vai se angustiar, sentirá raiva, vontade de matar. Vai sentir coisas que ainda nem tem nome, e que bom que não tem. Precipício, talvez.
Como ler, você quer saber? Para isso trago um poema, que não ensina, nenhum deve ensinar, mas é preciso ouvi-lo e ter vontade de buscar mais disso:
Escrevendo um currículo – de Wislawa Szymborska (Trad.: Regina Przybycien)
O que é preciso?
É preciso fazer um requerimento
e ao requerimento anexar um currículo.
O currículo tem que ser curto mesmo que a vida seja longa.
Obrigatória a concisão e seleção dos fatos.
Trocam-se as paisagens pelos endereços
e a memória vacilante pelas datas imóveis.
De todos os amores basta o casamento, e dos filhos só os nascidos.
Melhor quem te conhece do que o teu conhecido. Viagens só se for para fora.
Associações a quê, mas sem por quê. Distinções sem a razão.
Escreva como se nunca falasse consigo e se mantivesse à distância.
Passe ao largo de cães, gatos e pássaros, de trastes empoeirados, amigos e sonhos.
Antes o preço que o valor e o título que o conteúdo.
Antes o número do sapato que aonde vai, esse por quem você se passa.
Acrescente uma foto com a orelha de fora.
O que conta é o seu formato, não o que se ouve. O que se ouve?
O matraquear das máquinas picotando o papel.
Wislawa Szymborska
Sobre Paulo Zan
O autor e pesquisador Paulo Zan
Paulo Zan é natural de Rio de Contas-BA. É graduado em Filosofia e mestrando em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia. É autor de “As visões de Olímpio Fonseca” (2021), “Linha Tênue” (2022) e “Trapaças” (2023), e tem participação nas antologias de contos “Pacote de textos” (2021) e “Acaso literário V.1” (2021). “Como ler literatura” é sua crônica de estreia na Revista O Odisseu.