O editor da Revista O Odisseu, Ewerton Ulysses Cardoso, escreve sobre a experiência de assistir o escritor e dramaturgo Wole Soyinka em Salvador no dia 06 de novembro de 2023.
O Museu Nacional de Cultura Afro-Brasileira, o Muncab em Salvador, ficou fechado por três anos. Não por acaso os últimos três anos. Não por acaso retorne agora, em 2023, primeiro ano da nova gestão do Ministério da Cultura. No entanto, o Muncab é um aparelho de alto investimento da Prefeitura de Salvador, na pessoa do prefeito Bruno Reis (União Brasil) e do Secretário de Cultura e Turismo de Salvador Pedro Tourinho.
Em razão do evento Liberatum esta semana, o Muncab recebeu visitas ilustres que puderam dar uma espiadinha prévia no acervo. Entre eles, a Rainha de Wakanda: a atriz Angela Basset, e o ator Bruno Gagliasso e seus filhos. Mas o maior acerto foi a escolha do convidado para abrir a casa: o escritor e dramaturgo nigeriano Wole Soyinka.
Fiquei emocionado ao saber que o autor estaria na capital baiana. Durante alguns anos, Soyinka povoou os meus sonhos de aspirante a escritor. Acho que nomes como Wole Soyinka ultrapassam o campo da literatura, sendo patrimônio da humanidade em sua totalidade.
Isso porque a principal obra de Soyinka é a sua vida. Ele em si é a personificação da literatura contemporânea e a toda a sua força. Caso você não saiba, Wole Soyinka foi o primeiro autor negro e africano a receber um Prêmio Nobel de Literatura, em 1986, mais de 80 anos após a primeira entrega do Prêmio.
Logo, durante 80 anos a Academia Sueca ignorou com veemência a literatura que nascia do Continente Mãe, como se as vozes que dali vinham ou eram irrelevantes ou simplesmente inexistentes. Quase 40 anos depois, nada mudou muito. A Academia premiou apenas outros 3 escritores negros, sendo apenas 1 autora mulher negra, a saber a estadunidense Toni Morrison.
Em Salvador, o autor foi questionado pela comunicadora Camilla Apresentação (@pretaletrada) sobre o sentimento de ser um autor vanguardista, capaz de abrir portas para outros autores. Ao fazer a pergunta, Camilla deu ênfase ao recebimento do Prêmio Nobel e também questionou a continuidade do apagamento de nomes negros por parte da Academia Sueca.
Em resposta, Wole falou sobre a necessidade de “retirar do gueto toda atividade humana”. Ali, o autor falou sobre como o sistema imperialista insiste em jogar para debaixo do tapete a arte que é produzida fora do eixo Norte-América e Europa.
Para isso, afirma Soyinka, é preciso dar voz aos novos autores e talentos e, sobretudo, à história desse povo invisibilizado. Então, concluiu dizendo: “É a hora dos novos leões rugirem”.
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O Som do Rugido do Leão
Ouvir isso para mim foi impactante. Cheguei atrasado à mesa de Wole por conta de um problema com meu ingresso (a tecnologia me deixou na mão e eu fiquei sem internet durante todo o tempo em que precisei resgatar o ingresso no meu celular), e por isso estava inquieto.
Sentia dentro de mim apenas que deveria ir ver o Wole. Mesmo com todo o contratempo, tive certeza de que aquele seria um momento de romper em minha vida. Algo romperia naquela tarde, eu tinha certeza, e o romper seria feito pela afiada espada que sairia da boca do leão Wole Soyinka. Assim foi.
Ser um artista amador, em qualquer área que seja, é muito difícil. Lidar com a falta de recursos econômicos, a falta de uma plataforma ampla, de reconhecimento e oportunidades é muito difícil. Eu sabia que não tinha sido fácil para o Wole também. Pelo contrário, foi ainda mais difícil.
Além de escritor, Wole foi ativista pela paz e lutou pelo fim da ditadura na Nigéria e também um atuante porta-voz do Pan-Africanismo no século passado e até hoje. Durante os anos de conflito em sua terra, Wole foi preso. Na prisão, escreveu um livro num rolo de papel higiênico, tamanha era a necessidade de escrever.
Necessidade. Necessidade de Escrever. Escrita Urgente. Ou escreve ou morre. Por isso é artista, não comerciante, não vendedor de livros.
Mais à frente, Wole foi questionado sobre referências e influências. Achei engraçada a resposta dele: “não tenho referência alguma na hora de escrever”. Mencionou, contudo, referências do fazer literário, e nesse momento citou Toni Morrison.
Na verdade, Wole se colocou em contraposição à Morrison. Isso porque ele mencionou que ela fazia um trabalho impressionante de pesquisa para escrever, o que ele declarou como surpreendente. Ele, no entanto, sentia que conseguia escrever apenas aquilo que estava no íntimo do seu ser.
Sobre isso, disse: “O que eu escrevo não sai de nenhuma página de livro ou de pesquisa no Google, sai do que eu sinto”. Ele ainda brincou com Camilla Apresentação ao dizer: “vocês perguntam como se eu fosse um escritor metódico”.
Em todo tempo em que ouvi Wole falar, com aquela humildade e paciência (por vezes sem ouvir direito o que estava sendo dito, ao que ele sempre culpava o eco do auditório do Muncab), sentia o romper que mencionei mais acima. Terminei de ouvi-lo e contei a todos: “algo mudou em mim”.
Acho que o que mudou a percepção da escrita, do fazer literário. Conversei com Marcus Vinicius Rodrigues, minha companhia de conferência, que saí de lá feliz por ter escolhido a literatura como o meu “lugar de fala”. Foi a melhor escolha que eu fiz. Porque é da literatura que nasce alguém como Wole Soyinka, é um mundo, é uma existência que muitos desconhecem, como disse Marcus. É a minha existência.
P.s: Dedico esta crônica ao meu amigo Pedro Henrique Rodrigues, que me disse ontem que “histórias fáceis não escrevem capítulos incríveis” sem romantizar o sofrimento. É que às vezes temos que valorizar nossa trajetória mesmo. Obrigado, Pedro.