Yukio Mishima: ‘Deixar as coisas acontecerem’

100 ANOS DE YUKIO MISHIMA: A escrita tornou-se uma espécie de religião. E sim, como todo religioso, tive meus conflitos internos, como o que me ocorreu quando li Yukio Mishima.

O escritor japonês Yukio Mishima (Foto: Reprodução).

Lá pelos idos de 2020 eu havia decidido me tornar um escritor, como se fosse uma dessas coisas que a gente decide ao despertar após uma noite intranquila. Como começar a correr. Fazer uma dieta. Tirar fotografias de uma mesma paisagem todos os dias na mesma hora para que se possa ver, depois, o registro da passagem do tempo e o evanescimento das coisas. Enfim. Um belo dia, já durante a pandemia, acordei cedo e comecei a “ler como um escritor”. Depois fiz oficinas. E passei a escrever, religiosamente, um conto por semana. Talvez alguma busca por dar sentido à própria vida num momento em que via as coisas num completo caos. O que importa é que não foi um desejo passageiro, como aquelas pessoas que quebram a dieta ou deixam de ir à academia nos períodos de festas e nunca mais retornam. A escrita tornou-se uma espécie de religião. E sim, como todo religioso, tive meus conflitos internos, como o que me ocorreu quando li Yukio Mishima.

O texto de Mishima, apesar de refletir costumes, é menos polido do que muitas coisas que são publicadas hoje. Tomei aquilo como uma provocação pessoal. Como se Mishima fizesse interrogações à minha fé. É possível ser escritor com esse pensamento tão ferrenho? É possível escrever com verdade sobre coisas tão diametralmente opostas à própria vida? Não que eu pensasse encontrar respostas para essas perguntas, uma vez que o próprio Mishima é exemplo morto de que ter convicções tão enrijecidas talvez não seja a melhor das coisas. Mas claro, Yukio Mishima é um autor muito complexo, não pode ser definido por seus atos extremos. Sua literatura, em especial, que não deixa de refletir as angústias do autor, traz personagens vívidos e que ficam em nossa companhia, como Sonoko, de “Confissões de uma máscara”, tornando-se o tipo de amizade que nós leitores também gostaríamos de ter.

Como a literatura e a mística desse São Sebastião à deriva tem aparecido para mim ao longo desses anos? Ainda nesse tom de interrogação-provocação. Como que dizendo que é preciso atirar-se mais. Tentar ir mais-além a cada vez. Lançar-se ao mar sem ter medo de naufragar [mesmo que isso pareça impossível] ou de viver a glória. 

“Se o erotismo é uma temática na obra de Yasunari Kawabata, a morte é tema recorrente de Mishima”, Paulo Zan sobre Yukio Mishima

Mishima era um extremo conhecedor da literatura, e interlocutor de sua época, trocando figurinhas principalmente com Kawabata [vencedor do Nobel de 1968]. Se o erotismo é uma temática na obra de Yasunari Kawabata, a morte é tema recorrente de Mishima. A minha ligação com ele é muito por aí. Embora aquele impulso inicial que me fez buscar por sua obra justamente por ser este um tema da minha própria composição também, aos poucos fui percebendo que estava muito mais inclinado a autores como Franz Kafka, por exemplo.

Ainda nutro algumas identificações com Mishima. Ainda é uma influência para mim, embora eu seja contra os golpes de estado no geral e discursos extremamente patrióticos. Talvez o que tenha faltado ao Mishima fosse um pouco mais de “exercícios espirituais”, digamos assim. A psicanálise me faz ver que ele tinha muitas questões a resolver consigo mesmo que a literatura — por mais que tenha sido um lugar frutífero para ele — por si só não resolve.

Me pergunto, claro que com as devidas proporções, se a literatura tem sido o bastante para mim desde então. E sigo com a minha fé… mas sem discursos patrióticos, nem harakiri [por enquanto].

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